Vai tempo, voa

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Ele interrompeu a conversa, largou o copo de cerveja, esticou os braços para conseguir alcançar as minhas mãos, se debruçou sobre a mesa, olhou bem nos meus olhos e disse: adoro mulheres mais velhas. E um silêncio tomou conta daquele bar underground que estávamos, como se uma redoma de vidro tivesse sido colocada envolvendo nós dois. Enquanto eu assimilava aquela declaração, que reunia honestidade por parte dele e constrangimento por ser pega de surpresa por minha parte, sorri . Adoro mulheres mais velhas. Enquanto ele já desgrudava as mãos dele das minhas e retomava a beber a cerveja no ritmo de quem tem 20 poucos anos – e tem mesmo – perguntei, ainda sorrindo, mas sem saber se eu queria mesmo era sorrir ou engatar uma conversa antropológica: é mesmo, por quê? E inúmeros foram os atributos a mim e a todas as mulheres da minha idade – ou quase todas – distribuídos. As da idade dele não sabiam conversar sobre músicas, livros, filmes, viagens, segundo ele. Falta algo, sabe? Sei sim, claro, já tive 20 anos e naquela época eu não achava que faltava nada, mas hoje vejo que faltava tudo. Ou quase tudo. Sem contar que a boa prosa depende da vivência. Mas isso é discurso de mulher mais velha, convenhamos. E usar a palavra prosa também.
Aos 20 eu nem parava para imaginar que um dia eu teria 50 anos. Parecia tanto inadmissível como distante. Hoje, trabalho com essa possibilidade diariamente, mas não sem antes me olhar no espelho e muitas vezes não reconhecer a mim mesma, como se aquela imagem ali refletida não compactuasse com o olhar de quem a enxerga. Do dia para a noite, como uma visita que subiu sem passar pela portaria, surge uma ruga de expressão, um vinco no lábio, um novo fio de cabelo branco ou uma nova mancha na pele (culpa daquele sol que você tomava achando que nunca, mas nunca mesmo, teria a mesma idade que a sua mãe).
Com 20 anos você ouviu do seu dermatologista que talvez lá pelos 35 seria importante aplicar um botox ou realizar um preenchimento. E aos 20 anos você sai do consultório rindo por dentro com a certeza de que aquele dia nunca chegará. Não só chegou como passou. Mas, então, você reavalia se vai mesmo já começar a paranoia delirante de não querer morrer jovem, mas também de não querer envelhecer (esse trecho aqui eu roubei do Keith Richards). Não digo que desta agulha nunca aplicarei, mas ainda preciso pensar mais um pouquinho.
Aos 35 seu oftalmologista diz que você ainda não precisa usar óculos para vista cansada, mas é só por enquanto, e o ginecologista alerta que seu tempo para ter filhos está se esgotando. Aos 35 você já sabe que envelhecer é para todos, o que você nem imaginava aos 20, quando ainda chamava de tia aquela mãe gata do seu amigo que tinha, o que, quarenta anos? Hoje é mais fácil ter amigos com 50 do que com 20.
Aos 20 você é capaz de rir dos seus pais quando eles falam que estão indo para o encontro de 15 anos de formados. Hoje você já pensa nos preparativos do seu encontro (se é que já não comemorou), que precisa incluir espaço para as crianças, quartos confortáveis para dormir e muito, mas muito Engov. Isso sem contar que é nessa mesma época que os pais dos seus amigos começam a ficar doentes, envelhecer e morrer. E você aprende a ser mais complacente, solidário, generoso e gentil.
Hoje, ao escrever esse texto e ao olhar para trás, sei porque eu, aos vinte anos, também gostava de homens mais velhos. Só nunca tive coragem de dizer isso olhando no olho de ninguém. Que abordagem diferente tem esses meninos mais novos, não é mesmo? Mas isso também é conversa de mulher mais velha.
Garçom, mais uma cerveja por favor.
E a conta.
Ninguém quer morrer jovem, mas ninguém quer envelhecer. Como faz?
Keith Richards

Coração que murcha

Perder um amigo diminui o coração da gente. Ao receber a notícia, enquanto suas pernas estremecem e sua respiração falha, o coração murcha até ficar do tamanho de um grão de areia. O Marco Benatti foi o meu primeiro editor. Junto com o Mario Evangelista me ensinou a escrever, quando eu ainda era uma foca que trocava o lide pelo sublide. O Benatti foi o primeiro a me dizer: “Fernandinha, puta texto ruim, reescreve minha filha”. E lá ia eu reescrever tudinho, com certo medo, mágoa e disposição. Isso em 2003, no meu primeiro emprego em Piracicaba.

No texto que publiquei recentemente sobre a Amazônia, em que contava da minha viagem, o Benatti deixou o seguinte comentário no Linkedin: “Feliz por você, Maria, pela viagem e porque finalmente aprendeu a escrever. hahaha”. Um comentário que era a cara dele e que eu achei mais do que bem-vindo tantos anos após os primeiros ensinamentos.

Depois disso, uma nova mensagem perguntando se aquele nosso almoço que tentávamos marcar há meses sairia em São Paulo ou no Amapá ou no Amazonas ou em Roraima. Em São Paulo mesmo, meu querido. Vamos na quinta?, perguntei. Já respondo, reunião, disse esse cara que eu falava que era o Russel Crowe brasileiro, mas com as devidas proporções mais do que bem guardadas. Ele nunca concordou, nem com o Russel Crowe e nem com as devidas proporções.

Foi ele também quem aconselhou que o Mário Rossit fizesse uma poupança e depois se casasse. Primeiro ele casou, comigo, e depois fez a poupança. Viva o Benatti.

A morte é assim, traiçoeira. Você está em casa, toca o telefone e – bomba – morreu seu pai, seu irmão, seu marido, seu amigo, sua mãe, deixando emails não lidos, contas em cima da mesa, o amigo na fila do restaurante, a mulher esperando para o aniversário na casa dos pais, as filhas aguardando por momentos que nunca virão, e as amigas, como eu, lamentando pelo almoço que nunca saiu porque nossos trabalhos e nossas agendas ocupadas não permitiram.

Mas já deveríamos ter aprendido que a morte não manda mesmo recado. Que a partida repentina de pessoas que amamos sirva para nos mostrar que não há momento certo para dizer que sente saudades, que ama, que sente vontade de ver, de abraçar, de beijar. Precisei perder amigos e o meu pai para aprender sobre sentimentos e sobre sempre estar só com quem no mínimo lhe queira bem. A vida é curta para ser pequena. A do Benatti tenho certeza que não foi. Espero que a nossa também não seja. Que o cara que me ensinou muito sobre jornalismo permaneça em nós como um grande legado e que a gente sempre arrume um tempinho ou um tempão para as pessoas que queremos bem. E que nossos corações possam se encher novamente de alegria um dia, transformando um grão de areia numa praia inteira. Como diria o próprio Benatti, dia ruim, dia ruim.

Eu, na floresta

Para alguns eu contei pessoalmente. Para outros foi o mundo virtual que se encarregou de transmitir a notícia. Tem quem acompanha essa minha nova jornada que aos poucos ganhou forma desde o começo. Outros, nem tanto assim. Poucos, bem poucos, me chamaram de louca. Muitos se empolgaram mais do que eu e com eles entendi a dimensão da minha odisseia e da sombra da vida que rodeia a todos nós e percebi que a coragem é o principal antídoto contra o medo, a angústia e a inércia.

Ter pedido demissão foi só um passo. Antes de chegar até esse dia eu precisei cavar. Cavar fundo o mundo e os sentimentos para tentar sanar as questões existenciais que me assombravam diariamente. Para que eu acordava cedo para ir trabalhar? Estava feliz em entregar minha energia, meu tempo e minha disposição com aquelas empresas? Continuaria a ter estômago para atuar com situações que iam contra meus valores?

Enquanto não encontrava as respostas, trabalhei, fiz cursos pessoais e profissionais, aprendi a meditar, fiz terapia, corri, pedalei, viajei, escrevi, plantei, dancei, ouvi música, ouvi as pessoas, cantei, silenciei, me retirei, retornei, me tornei vegetariana, encontrei amigos, ri, chorei, separei, entendi o amor, perdi meu pai, entendi a saudade, aprendi a cozinhar, desapeguei, diminuí o consumo, doei , tirei a poeira, vi, revi e revirei. E foi então que uma luz se acendeu. E ela teimava em não se apagar, como se fosse a luz no fim do túnel que resolveu morar em mim, iluminando tudo ao meu entorno. Então eu entendi.

Em alguns meses saio para um período sabático. Vou percorrer a Amazônia em busca dos moradores da floresta e aprender. Aprender a relação deles com o tempo, com o dinheiro, com o consumo, com as tradições e com o meio ambiente. Quem são essas pessoas que habitam a selva? Que comunidades são essas que podem desaparecer? Ribeirinhos, quilombolas, indígenas, criadores de búfalos, produtores de açaí, pescadores, quebradeiras de coco, produtores de capim dourado e todos os seres humanos que a imensidão da floresta permitir que eu tenha contato.

Mas por que a Amazônia? Porque quando voltei de lá em janeiro deste ano tudo deixou de fazer sentido para mim. Ao pisar em São Paulo, meu olhar em relação ao Brasil estava modificado por completo. Todos os meus conceitos sociais, políticos e geográficos se esvaíram. Dormi em duas comunidades ribeirinhas distintas e me dei conta de como a minha visão em relação ao Brasil é completamente limitada e deturpada pelo meio em que eu habito.

Comecei a ler sobre a Amazônia e seus personagens. Sobre a época da borracha, da escravidão dos seringueiros e a maneira como eles se uniram e lutaram para conseguirem a liberdade. Sobre como o Exército incentivou o desmatamento da floresta para levar o progresso e defender fronteiras. Sobre como a ditadura maltratou e matou índios. Sobre os rios e os animais, sobre a importância da floresta para o mundo. E, desde então, eu nunca mais tive um só minuto de sossego.

Foi quando percebi que também integrava um sistema que eu mesma colocava em xeque diariamente, que é a roda da vida de trabalhar para pagar contas e consumir e comprar um apartamento e depois comprar um maior e depois trocar de carro e depois comprar mais roupa e depois um armário novo para caber as roupas e depois trabalhar mais e mais horas. E sentir que faltava tempo para ler, cuidar das minhas plantas, ir à feira de orgânicos, passar mais tempo com a minha mãe, com o meu pai, com os meus sobrinhos, com os meus irmãos. Mais tempo para viver. E para quê? Por quê? Para quem? Foi aqui que a luz se acendeu. E pela primeira vez não sinto que estou jogando tudo para o alto. O que eu sei é que o alto é o lugar para onde vou.

Tocantins, Maranhão, Amapá, Pará, Roraima, Amazonas, Acre, Rondônia e Mato Grosso. Vou ter um blog, o Eu, na Floresta, para documentar toda a viagem, com fotos, vídeos e textos. Espero que assim eu possa transmitir para vocês quem são essas pessoas que estou trombando floresta afora. Como elas vivem, como chegaram até ali, seus sonhos e medos, suas relações interpessoais e com a mata. Vamos juntos começar a prestar atenção numa parte do país que muitos nem sabem que existe e, por isso, não se importam com nada o que acontece por aqueles caminhos e rios, como as hidrelétricas. E isso é só um exemplo. Eu também já enxerguei a Amazônia assim, mas ao sobrevoá-la pela primeira vez eu já sabia que uma árvore nascia em mim. Minha proposta é: Vamos juntos ecoar os sons da selva e dar voz aos guardiões da floresta.

Volto em breve com novidades. Enquanto isso, se você tem alguma dica ou sugestão daquele mundo, mundo, vasto mundo, escreve, liga, me manda uma mensagem e vamos tomar um café, uma cerveja ou um suco de cupuaçu. Se você tem algum amigo que mora em qualquer um dos estados do Norte, me apresenta? Aos amigos e parentes que estão comigo nessa jornada, o meu muito, muito, muito obrigada. Por tudo. Por terem aceitado meus convites para almoçar. Por terem me ouvido. Pelas aulas de fotografia. Por terem me incentivado. Por já terem se tornado uma grande rede amazônica de conselhos, contatos, aulas e colaboração mesmo antes de eu ter atado minha rede no primeiro barco. O nome de vocês já está gravado na sumaúma gigante e centenária que está crescendo em meu coração.

Melhor acordar

Enganosas e desenfreadas fantasias da insônia, noites mal dormidas, ansiedade, tempo a ganhar, ressacas não curadas, amizades consolidadas, outras perdidas, ou desprendidas, ou pretendidas, amores resolvidos, amores mal resolvidos, cicatrizes, sentimentos desperdiçados pelo caminho. Vida maltrapilha, mas só por hoje. Ou só por ontem. Ou só até amanhã. Saudade que arrebata, lágrimas não contidas que se esparramam pelo lençol, gosto de sal, um barulho nas entranhas que ficou mudo, outro ensurdecedor, mas só quem ouve é você, o que é? não sei, não sabemos, suor que escorre da testa até pingar no asfalto. Acabou o suor. Mas não acabou o calor. Frente fria. Nariz entupido. Tosse. Óleo de banho para vencer. Vinagre que venceu. Bolacha que venceu. Castanha que murchou. Que vença, que murche, que exploda. Nunca usei botas de cano alto. Nunca usei sapato de bico fino. Nunca quis uma bolsa Chanel ou um sapato Louboutin. Nunca consegui brincar num pogobol, muito menos num bambolê. Nunca gostei de cintilante. Mas já gostei de cigarro, de patins, de torresmo e de carne. E de pular corda. E de pinga com mel. Um suspiro. Uma decisão. Maravilha. Para e veja a banda passar. Não quero. Quero ser a própria banda. Uma big band de jazz. Todos os instrumentos numa só canção. Juntinhos e afinados, mesmo que desafine por instantes. Ou por horas. Ou por dias. E até anos. Um rojão que explode em festa de Revéillon. Um rojão silencioso. Felicidade, euforia. Tristeza. Bipolaridade. Questões. Uma ruga que nasce. Uma marca de expressão que agora é sua. Um fio de cabelo branco. Um número de roupa maior. Uma saia mais curta. Camisetas de banda. All Star. Maquiagem. Tatuagem. Reencontros que são seus. E meus. Ou de ninguém. Silêncio e astúcia. Gente de verdade. Uma decisão. Uma só. E pronto. Bum. Turbilhão. Noites mal dormidas, suores noturnos. Melhor acordar.

Um vazio cheio de grãos de areia

A morte é mesmo uma coisa estranha. Às vezes parece até que a pessoa não morreu. É como se você estivesse na cozinha e ela no quarto lendo um livro enquanto você faz ali um ovo mexido rapidinho. Mas um ovo mexido em que você pode colocar cebola, tomate e um pouco de pimentão, ingredientes que a pessoa que supostamente está no quarto nunca gostou nem um pouco. É como se ela tivesse recusado a refeição, mas para sempre. E a rotina segue com você na cozinha. E ela no quarto. Você na sala. E ela no quintal para cuidar das plantas. Você no supermercado. E ela no banco. É como se o cotidiano tivesse se tornado uma série de desencontros de pessoas que moram na mesma casa e que nunca mais se trombaram pelo corredor, pela garagem ou pelo jardim, mas apenas por uma imposição que parece até da vida e não da morte.

É como se o vazio causado pela morte começasse a ser preenchido, como aquelas garrafinhas de areia colorida. Demora, mas em algum momento o artesanato fica pronto e a você só cabe apreciar como é que aquilo foi produzido.

Quando alguém morre, as pessoas que mais acertam nas palavras de consolo são aquelas que já passaram por situações semelhantes. Não raro ouvimos “descansou” ou “foi melhor assim”. Melhor para quem? Era o que eu me perguntava no velório do meu pai. Para mim é que não foi melhor. É porque o amor é mesmo egoísta. Quanta contradição para um sentimento tão nobre. Mas é que mesmo com o corpo que padece numa cama de hospital, ainda é possível sentir a respiração, pegar na mão, dar um beijo na bochecha, encostar a cabeça no peito para sentir a respiração e dar um cheiro no cangote. Coisas do amor. E do apego. Vai entender.

A última vez que estive em Bauru, estava com medo de chegar em casa e sentir o vazio acometendo minha alma, como um sopro de um gigante em um coração já aniquilado, assim que a porta da sala de visita se abrisse. Se meu pai estivesse lá, seria ele quem cuidaria de me recepcionar assim que eu tocasse a campainha. E ele também atenderia o interfone com o uníssono “Pois Não” com a voz dissimulada como se já não soubesse que era eu.

Mas ao entrar por aquela porta, aberta pela minha mãe que tinha sido quem foi me buscar na rodoviária, parecia que meu pai estaria sentado na sala, talvez um pouco cansado para me esperar logo na garagem. Mas ele não estava. Então talvez estivesse no escritório fazendo palavras cruzadas nível Difícil, ou compenetrado nas tabelas de Excel com as contas do mês, ou ainda lendo algum livro sobre religião, política ou filosofia. Ou ainda algum título do José Saramago. Mas ele não estava. Será que estava no banho? Será que aproveitaria para fazer a barba? Então demoraria um pouco até ele sair para me ver. É, ele não estava em casa. Não me esperou mesmo sabendo que eu chegaria.

E por alguns momentos me senti murcha, como se eu fosse uma boia furada no meio da correnteza. Depois o furo, que é um vazio é infinito e escuro e que mora dentro do peito, foi sendo aos poucos preenchido com as lembranças das fotografias espalhadas pela casa, quando ainda éramos cinco. E a presença física dele foi sendo substituída pela voz que ainda ecoa no ouvido e o cheiro que você é capaz de sentir mesmo sem o abraço. A pessoa está morta, mas está viva. Será que é isso o que chamam de legado? Ou isso é saudade? Ainda não sei, mas sinto que os primeiros grãos de areia estão sendo delicadamente inseridos na garrafa vazia que estava o meu coração. Ainda não chegou na parte colorida e está longe de o artesanato ficar pronto, mas já dá para ver que vai ficar bonito. É, a morte é mesmo bem esquisita. E o amor também.