Um passado em chamas

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Preparando-se para uma viagem ainda sem data, Julia já esvaziava os armários e as gavetas na tentativa de deixar os espaços cada vez mais arejados. Queria se desapegar dos objetos que tinha acumulado ao longo dos seus 35 anos antes da despedida final para a floresta, onde pretende passar alguns meses da sua vida.

Procurava um saco de lixo grande para depositar as nove bolsas que tinha separado para doação quando encontrou uma única unidade na área de serviço, mas que estava ocupada com cartas, contas e papéis que datavam de 2008. Se colocado o saco em pé, a tralha ocupava quase metade daquele saco de100 litros. Um passado acumulado em lembranças depositadas no mesmo armário onde estão guardados o ferro de passar roupa, o sabão em pó, o amaciante e alguns tapetes antigos que de tão encardidos nunca mais serviram se não como panos de chão. Era chegada a hora de os papéis cederem seus lugares às bolsas.

Julia aprendeu com seu pai que era preciso cautela para descartar documentos no lixo comum. Alguém poderia se apropriar do número do seu RG, CPF, título de eleitor. Nunca se sabe não é mesmo, filha? Julia também não tinha um triturador de papel e seu anseio não permitiu que esperasse até o dia seguinte para dar fim ao amontoado de coisas que um dia tinham ganhado tanto espaço em sua vida.

Pensou, pensou, pensou. Colocar fogo nessa papelada toda era uma ótima opção, concluiu. Avaliou o apartamento, lembrou-se da recomendação da sua mãe sobre acender velas em locais com cortinas por perto e optou pela área de serviço. Local arejado, sem nada que pudesse pegar fogo por perto, perfeito.

Relembrou as novelas de antigamente, quando amantes tomadas pelo ódio queimavam fotos e cartas em recipientes de inox, e escolheu o único objeto que tinha que se parecia mais ou menos com os da novela – uma panela que sua mãe havia lhe dado de presente – e foi ao trabalho.

Com as mãos ásperas, consequência da louça recém-lavada aliada à alergia ao detergente e à ausência de creme hidratante, iniciou o processo de rasgar os papéis em pedaços menores para que coubessem na panela. Quando ela, a panela, já estava sufocada de tanto passado retalhado, Julia a colocou dentro do tanque – qualquer coisa era só abrir a torneira – e pegou o isqueiro. Queima do lado direito. Queima do lado esquerdo. Queima um pouco no meio. Voilà. E a chama azul começava a se alastrar panela adentro. E junto com ela a fumaça cinza e nebulosa ganhava aos poucos o seu espaço por toda a extensão da área de serviço.

A sensação de desapego tomava conta de Julia, que sentia uma mistura de felicidade com melancolia por saber que nunca mais veria aqueles cartões de final de ano de amigas que preferiam dedicar um ano melhor à moda antiga, nem as contas de telefone que mostravam que um dia outro alguém já tinha feito parte daquela vida e nem a carta escrita de próprio punho para a Unimed para provar que ela era ela mesma.

FUMAÇA

Melhor fechar a porta da cozinha para a fumaça não se espalhar pela casa. Fechou e continuou a picar os demais papéis para a segunda leva do passado que viraria cinza na panela de inox.

MAIS FUMAÇA

Toca o interfone:

– Julia, aqui é a Rebeca do 83.

– Oi, querida. Tudo bem? O que manda?

– Está pegando fogo no prédio e parece que a fumaça está saindo daí.

– Não, não, estou apenas queimando uns papéis aqui na área de serviço. Tudo sob controle.

– Os vizinhos estão todos nervosos. O Seu Nicanor até já desceu na portaria pra chamar o síndico. Querem chamar os Bombeiros.

– Jura? Não precisam se preocupar. Eu já vou apagar.

Desliga e pensa que não vai apagar, pois o fogo está controlado e é só um pouco… cof, cof… de fumaça. Pica papel, coça o olho, fumaça, cinza, pica mais, pica tudo, fumaça, tosse.

Toca o interfone de novo:

– Julia, aqui é o síndico.

– Já sei, estão achando que estou colocando fogo no prédio. Mas está tudo bem.

– Dona Julia, os moradores estão preocupados.

– Tá bom, tá bom, já vou apagar.

Enquanto todos achavam que Julia não sabia o que fazia, ela se orgulhava de ter colocado a panela bem embaixo da torneira. A água que atingiu o recipiente num jato forte e certeiro foi o empurrão que a fumaça precisava para adentrar em cada um dos cômodos do apartamento como se ele o pertencesse e nenhuma permissão para isso fosse necessária.  Os olhos de Julia ardiam. Na panela, uma mistura de água com papel queimado dava fim à tentativa de estraçalhar o passado em pedaços tão pequenos até que não fosse mais nada, nem migalhas.

Salve, salve Elis

Taxista perguntou se eu tinha ouvido as conversas grampeadas da Dilma com o Lula. Disse que não. Menti. Perguntou se eu tinha visto a lista da Odebrecht. Disse que também não. Menti de novo. Perguntou se eu estava por dentro do processo do impeachment da Dilma. Respondi que por cima, bem por cima. Menti mais uma vez. Ele me olhou pelo retrovisor, meio desconfiado. O senhor se importa de colocar na rádio Eldorado? É que eu gostaria de ouvir um pouco de música. E lá Elis Regina já cantava a melhor versão entre todas as existentes para As Curvas da Estrada de Santos. Dá para aumentar um pouco? Isso, assim está ótimo. Salve, Elis Regina.

A mentira no caos

A brisa do outono em pleno Verão aliviava um pouco o mal-estar, mas não o suficiente para que ele cessasse. A dor estomacal e os enjoos persistiam, mas a febre já havia dimunído e eu precisava trabalhar. Resolvi encarar o ônibus mesmo assim. Seria rápido. Era só descer a Brigadeiro e, pronto, chegou. Esperei por uma unidade com ar condicionado e não foram necessários mais de cinco minutos para esse sonho tornar-se realidade. Sorte dizzyno meio do caos? Senti como se fosse a flor de Lótus da metrópole.
Ao passar a catraca, aquela visualizada 180 graus no ônibus para identificar os assentos vazios e o mais próximo de mim era um preferencial. Escorei ali mesmo, visto que não tinha nenhum perfil que devesse ocupar aquele lugar. Sentei, não sem antes me recriminar por esse ato indefensável e me questionando se não tinha mesmo forças para andar mais um pouco até o final do ônibus. Não, eu não tinha. Emiti um sorriso amarelo para o senhor ao meu lado e um boa tarde. Força do hábito. Ele respondeu de maneira efusiva e imediatamente tive a certeza de que, sim, ele ia puxar assunto. Não, não, não, repetia meu post it mental. Oi, você está grávida?, perguntou aquele homem dos seus 70 anos, de chapéu e óculos escuros sem nenhum tom de recriminação, mas sim curioso para saber em qual dos modelos de preferencial eu me encaixava e querendo puxar papo. Eu sabia. Sabia. Meu feeling falha pouco.

Estou, sim, respondi me arrependendo um milésimo de segundo depois sabendo que não conseguiria sustentar a mentira caso aquele senhor decidisse conversar durante todos os dois quilômetros e meio do meu percurso. Não conseguiria porque nunca encarei uma gestação para ter fatos para contar. Mas eu também não queria explicar que estava daquele jeito desde que tinha voltado da Amazônia. Ela ia perguntar se não era malária, se tinha tomado vacina para a febre amarela, se não era dengue e por aí vai. Eu precisava falar pouco. Estava passando mal. Muito mal. E se chegasse alguém do preferencial para sentar ali já tinha prometido a mim mesma que iria para o final do ônibus nem que fosse engatinhando.

E de quantos meses? Três meses, respondi olhando para a barriga e imaginando que dava para enganar. Já sabe o sexo? Não, ainda não, devolvi sem saber se com três meses já era possível ou não descobrir. Agora sei que é, mamães, mas com um exame meio caro e tal, certo? Nomes? Ahahaha. Universo me tira daqui, por favor, eu não queria fazer isso, mas foram as circunstâncias. Nunca mais isso se repetirá, Universo. Eu prometo. Joana, se for menina, enquanto realmente sentia vontade de vomitar, mas a essa altura eu já não sabia se a culpa era do nervoso ou do jambu.

Trufa, trufa. Compre uma trufa e faça uma criança feliz, adentrou gritando o vendedor ambulante no ônibus contando a história do local onde trabalha e que atende crianças em situação de risco. O senhor ao meu lado logo esqueceu a gravidez e passou a reclamar que essas pessoas sempre entravam aos berros nos ônibus e atrapalhavam o cochilo dele. Enquanto ele reclamava, eu agradecia.

Um estranho ao meu lado

Estação Vila Madalena. Tarde da noite. Metrô vazio. Me acomodo e tiro o livro da mochila. Um homem senta ao meu lado. Olho em volto e constato o que já sabia: metrô vazio. Por que ele sentou ao meu lado? Parabéns, ele disse antes mesmo que eu pudesse ensaiar me levantar. Não sei bem porque, mas agradeço. Você está lendo Guerra e Paz, disse ele, com um fio de suor que escorria pelo lado direito do rosto e os óculos embaçados. Eu li a mesma edição que a sua, mas como começou a ler agora sugiro que você compre a da Cosac Naify. É, traduzido direto do Russo, eu sei, respondi. Expliquei os motivos que me levaram a ler aquela edição de bolso e um deles era o livro caber na mochila para ler no metrô. Ele disse que era fã do anarquista Tolstói, que já tinha lido Ressureição, Anna Karenina, Ivan Ilitch e agora estava debruçado sobre os contos recém lançados também pela falecida Cosac Naify.

Já sabendo que não haveria tempo para a leitura, guardei o livro de volta na mochila. Ele disse que estava voltando de um amigo secreto e que tinha ganhado dois livros do Dostoievski, mas que um deles tinha em casa, o Noites Brancas. Perguntou se eu já tinha lido e diante da minha negativa me ofereceu o livro de presente. Respondi que entre meus amigos sou conhecida por aceitar tudo o que me oferecem, de comidas a livros, que era melhor ele pensar melhor. Ele tinha uma estação para decidir até eu saltar do metrô. O livro é seu, leva, boa leitura. Poxa, obrigada. Minha estação. Levantei e saí. Ainda antes do metrô continuar o percurso tentei saber o nome daquele cara de barba longa, tênis All Star e com gotas de suor que não cessaram nem mesmo com o ar condicionado, mas ele já não me via. Tinha tirado o seu livro da mochila e estava envolto em outro russo, Nikolai Gógol e o livro O Capote. O metrô partiu. Tchau, homem de barba. Tchau Cosac Naify.

Enquanto escolhia as frutas no supermercado perto de casa, a música que começa a tocar no alto-falantes é uma Rita Lee nos seus tempos mais áureos com Desculpe o Auê. Eu, sem muito pudor, comecei a cantar alto entre um limão e outro. Olhei para o lado e uma senhora, entre uma caixa de morango e outra, também cantava sem se importar com quem estivesse por perto. E mais uma pessoa, entre mamões e morangos, entoava “fiz greve de fome, guerrilhas motins…” como se lembrasse de alguma que tivesse aprontado por aí quando perdeu a cabeça por seu jeito inseguro. E poucos segundos depois de a música começar não havia senhor ou senhora – os frequentadores em massa daquele supermercado – que não embalasse os legumes, verduras e frutas ao som da diva Rita Lee, como um modesto flash mob espontâneo. Modesto em participantes, mas grande na nostalgia que só quem já pensou em se mandar por aí por ciúme sim e roubar os anéis de Saturno, sente.

Então agora aproveita a vibe e assista ao vídeo clipe de Desculpe o Auê e cante como se estivesse no supermercado lá com a gente, entre melões, maçãs, pêras e Ritas.