Uma caixa de memórias chamada casa de vó

A casa dos meus avós maternos nunca teve uma garagem, mas sim uma varanda. Uma varanda que até poderia ter sido uma garagem, se algum dia um carro tivesse sido guardado ali, mas aquele espaço sempre abrigou apenas vasos com plantas e cadeiras de tiras de plástico coloridas que confortavam tanto a minha pesada e forte avó como o meu leve e franzino avô, como se eles nem fossem tão diferentes assim.

memóriasAquela é a mesma casa onde minha mãe e minhas tias cresceram e antes mesmo que eu e meus primos escorregássemos encardindo nossas roupas pela rampa que ainda hoje liga a varanda à calçada, aquela casa já tinha uma história com um enredo muito mais parecido com drama do que com a comédia. E nesse filme os personagens são o pai, cinco filhas e uma mãe batalhadora que guerreou sem armas por uma vida melhor para as suas meninas. Uma história de vida dura, em que ser criança nem sempre foi tão simples. Uma infância que estava sempre na corda bamba entre continuar a ser criança ou tornar-se adulta agora mesmo para conseguir dar conta do recado. Mas o final, como não poderia deixar de ser nos melhores roteiros, é daqueles felizes em que a plateia continua chorando mesmo depois de as luzes do cinema já terem se acendido.

Quando eu e meus primos começamos a fazer parte daquela casa e daquela história, a infância havia nos sido concedida sem barreiras. Tinha bolo formigueiro da minha avó esperando pela nossa chegada em cima da mesa, tinha a paciência de avó demonstrada no ato de descascar as laranjas para todos os netos que assim desejassem. Tinha o quintal com pés de caqui, jabuticaba, abacate, maracujá e abóbora. E há quem lembre até de uma bananeira. Tinha também meu avô inventando traquinagens e pintando o sapato de azul e as estátuas de amarelo. Tinha ainda o meu avô trabalhando, mesmo com sua paralisia parcial, como barbeiro no quintal.  Eu olhava a cena pela janela do quarto e pensava: “Que clientes mais corajosos”.

Mas com a morte dos meus avós a casa foi vendida e dia desses desviei o meu caminho para passar em frente a ela, nutrindo certa ilusão de que tudo estaria intacto. Mas um carro estava estacionado naquela varanda. Ou seria naquela garagem? Não havia mais cadeiras coloridas e nem plantas. Apenas um Pálio roxo. Era uma garagem.

Por mais que tenhamos consciência da finitude da vida e nos esforcemos diariamente para não criarmos apego aos bens materiais, senti como se as pessoas que ali morassem tivessem se apropriado das minhas lembranças e um soco no estômago chegou quando entendi que outras recordações já estavam sendo construídas naqueles cômodos e são outros os personagens que atuam agora naquele espetáculo. Meus avós já encenam em outra dimensão e eu, meus pais, minhas tias e meus primos, em outro palco.

Foi então que percebi que ali nunca foi nem uma varanda e muito menos uma garagem. Era mesmo uma dessas caixas de memória que depositamos emoções ao longo da vida e que alguém fechou sem sua permissão. Mas para a sua surpresa a caixa não tem cadeado. Só precisa lembrar de tirar a tampa para deixar que suas memórias passeiem por aí. E depois você fecha de novo, mas a saudade sempre vai teimar em ficar do lado de fora da caixa.

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