Laços disformes e coloridos da vida

Convidei o Leandro para morar em casa enquanto eu estivesse na Amazônia para cuidar com amor das minhas plantas e dos meus livros. E ele aceitou. Eu e Leandro nos conhecemos numa noite que terminava para dar lugar a madrugada na Vila Madalena. Nossa conversa começou em um bar e terminou no outro. Ninguém mandou o garçom do primeiro não nos servir mais uma cerveja justo no momento em que a conversa da jornalista com o historiador barbudo ganhava ares de amizade e amor seculares.

Debatemos entusiasmados sobre mobilidade urbana, consumo, a vida em São Paulo, a sede das pessoas por dinheiro, viagens e tatuagens. Desde então, meio aos trancos e meio aos barrancos, secamos algumas garrafas de vinho, tentamos sem sucesso assistir a alguns filmes até o final, compartilhamos muitas músicas e incontáveis livros, comemos alguns sanduíches, pedalamos pela cidade, filosofamos sobre a vida, Deus e o Universo.
Naquela noite Leandro nem sabia, mas a minha vida estava prestes a mudar completamente. Enquanto entre nós um laço se estreitava, meu pai se despedia desse mundo e a vida a partir dali nos apresentaria um novo tipo de laço, com novos contornos.

Contornos que começaram disformes e em preto e branco e que depois percebemos que era só o começo do aprendizado de que um outro tipo de laço se forma unindo quem parte com quem fica. Um laço com várias pontas. E a ponta principal está lá em cima com o meu pai. E tem uma ponta comigo, que me acompanha por onde quer eu eu vá. E outra ponta com cada um dos meus irmãos. E uma outra, a mais longa delas, está com a minha mãe, que canta, dança e toca sem desgrudar um segundo desse pedaço da colorida fita que nos mantém conectados, mas sem puxar demais que é para não arrebentar, permitindo que a fita baile suave enquanto minha mãe caminha pela vida, com a alegria de quem sempre olha para o céu e não enxerga negras nuvens.

Mas esse texto era para falar do Leandro. Devo ter saído do contexto porque hoje é o aniversário do meu pai e agora nós aprenderemos como é que se faz para não querer puxar demais a ponta do outro lado da fita num momento que sempre foi tão especial.
E hoje eu não vou ligar para Bauru para cumprimentá-lo e nem mesmo vou sair para procurar um presente me preparando para ir visitá-lo no final de semana. Neste momento parto para uma aldeia para participar da comemoração do reconhecimento de 44 anos de uma Terra Indígena.

E Leandro, que nunca imaginou que aquela mulher urbana que ele conheceu comendo empanadas no bar fosse um dia morar na floresta, estará em São Paulo após ter se deslocado em pleno domingo até o aeroporto de Congonhas para buscar um presente que ganhei durante a última visita à uma aldeia e que o Correio recusou a enviar.

A casa tem agora como objeto de decoração uma lança de um metro e meio feita com a palmeira da pupunha que um índio Huni Kuin me deu antes de eu partir e que me emocionou profundamente, a ponto de eu quase não segurar as lágrimas na frente dos índios todos. Índios, lança. Eu nunca previ isso. Leandro também não. Meu pai muito menos. É, a vida pode ser mesmo uma maravilhosa surpresa. Mesmo que os laços pareçam disformes e sem cores vez ou outra.